Vicente E. R. Marçal
Professor e Pesquisador em Filosofia e Epistemologia
INTRODUÇÃO
Nossa intenção com esse texto é
traçar o desenvolvimento da argumentação de Platão, nos quatro primeiros livros
do diálogo “A República”, no intuito de compreender o conceito de Justiça, como
conceito base para sua filosofia política.
Como Platão se serve do diálogo como
estrutura literária para a composição de seu texto, procuraremos delinear a
argumentação seguindo seu estilo, ou seja, utilizando das personagens como
portadoras dos conceitos que são tratados até que por fim Sócrates, porta-voz
de Platão, fazendo uso de sua maieutica venha a conceituar Justiça.
Não é nosso objetivo aprofundar uma
discussão mas sim provocar o leitor numa busca por fundamentar sua postura
ética, principalmente no que tange à questão de Justiça, com um pensador
Clássico como Platão.
CÉFALO
Platão inicia seu diálogo dando a
localização e os afazeres das personagens, principalmente Sócrates que atua
como narrador-personagem na história.
Ao irem ao Pireu para uma festa
celebrada em honra da deusa (cf. 327a) Sócrates, acompanhado de Glaucon (irmão
de Platão), é reconhecido por Polemarco que imediatamente, ao perceber que
Sócrates estava para retirar-se, o impede e convida-o para que fosse à sua casa
no intuito de terem um prazeroso diálogo. Começa a apresentação de algumas
personagens que terão importante participação na seqüência do diálogo.
O importante a salientar, nesse
primeiro momento, é o diálogo que se inicia com Sócrates e Céfalo no momento em
que Sócrates chega à casa de Polemarco. Ë de suma importância esse primeiro
momento, pois o mesmo delineia a necessidade de se definir justiça, ou seja, é
ele quem vai pautar a discussão.
Ao ser interpelado por Sócrates sobre
como encara a velhice, Céfalo faz inúmeras descrições e distinções sobre tal
tema, o mais importante a ser salientado esta na sua afirmação a respeito da
proximidade da morte, o que faz com que todo homem passe a repensar a vida e,
principalmente, como a viveu no sentido de estar digno para gozar o pós-morte
que, afinal, estando ou não certas as lendas e crenças, são preocupantes a todo
aquele que esta para encará-la. Pois, nas próprias palavras de Céfalo: “(…)
depois que uma pessoa se aproxima daquela fase em que pensa que vai morrer, lhe
sobrevem o temor e a preocupação por questões que antes não lhe vinham à
mente.” (cf. 330d) E tais questões são a possibilidade de se ter vivido uma
vida justa, evitando-se assim o Hades.
E, deste modo, toda a discussão, que
perpassa os livros de I a IV da República, versa sobre esse tema tão próprio: A
Justiça.
E como não poderia deixar de ser
Céfalo tem sua própria definição, ou seja, que: “Não ludibriar ninguém nem
mentir, mesmo involuntariamente, nem ficar a dever, seja sacrifícios aos
deuses, seja dinheiro a um homem, e depois partir para o além sem temer nada
(…)” (cf. 331b) que Sócrates vai simplificar dizendo: “(…) dizer a verdade e
restituir aquilo que se tomou.” (cf. 331d).
Sócrates vai propor uma série de
argumentos que vão inutilizar essa conceituação, principalmente ao se referir
que se alguém que em pleno juízo lhe der algo (no exemplo ele usa armas) e,
após, num momento em que se encontra desarrazoado lhe pede que seja devolvido é
ou não justo o fazer? A este questionamento Céfalo se vê sem possibilidades de
responder e, por força maior (ir preparar-se para o sacrifício) se retira do
diálogo, passando a responsabilidade de continuar o mesmo para seu filho
Polemarco.
POLEMARCO
Após uma tentativa, praticamente
inútil, em defender o argumento de seu pai, Polemarco acaba por definir de
maneira distinta, ou seja, chega à conclusão de que Justiça é: “(…) auxiliar os
amigos e prejudicar os inimigos.” (cf. 334b). Mas a grande problemática que
enfrenta diante de Sócrates está nos termos que usa em sua definição: amigo e
inimigo.
Ao final de uma vasta discussão,
Sócrates lhe mostra que a Justiça não vê a quem ela é útil, se a amigos ou a
inimigos. Deste modo Sócrates lhe mostra que a justiça é praticada por que a
pessoa é justa e não em vistas à quem ela é direcionada, ou seja, se só
pratica-se a justiça quando auxilia a um amigo, não é justiça, pois na verdade
é por ser justo que se pratica a justiça e não porque o ato justo é feito a um
amigo, sendo assim é impossível ao justo pratica a injustiça, mesmo que esta
seja a um inimigo, pois é de sua natureza fazer a justiça.
TRASÍMACO
Não contente com a situação do
diálogo, Trasímaco, famoso sofista que torna-se personagem de Platão nessa
obra, coloca Sócrates contra a parede afirmando que o mesmo fica somente a
questionar, mas ele mesmo não oferece nenhum conceito de Justiça que lhe seja
aprazível. Após uma longa introdução feita, mais como um requinte de estilo
literário, Sócrates faz com que Trasímaco dê seu conceito de Justiça, o qual
afirma que é: “(…) a conveniência do mais forte.” (cf. 338c). É claro que Sócrates
o trata ironicamente, já na primeira refutação a tal conceituação, pois coloca
que se Polidamas (lutador de pancrácio) por ser mais forte que todos os
presentes e lhe é conveniente uma dieta a base de carne, então se torna justo
ter uma dieta a base de carne por todos que presente se faziam na reunião.
Fazendo, com isso, que Trasímaco se irrita-se cada vez mais e pusesse a definir
melhor seu conceito.
Começa por defini-lo como sendo a
conveniência do governante, pois este faz as leis como lhe apraz. Mas quanto a
esse argumento, Sócrates demonstra com perfeição que é falacioso, tendo em
vista que o bom governante (claro que num projeto ideal) faz leis com vistas à
conveniência dos cidadãos e não de si mesmo, o que leva a conclusão que, nas
palavras do próprio Sócrates:
(…) nenhum chefe, em qualquer lugar
de comando, na medida em que é chefe, examina ou prescreve o que é vantajoso a
ele mesmo, mas o que o é para o seu subordinado, para o qual exerce a sua
profissão, e é tendo esse homem em atenção, e o que lhe é vantajoso e
conveniente, que diz o que diz e faz tudo quanto faz. (…) Portanto, Trasímaco,
é desde já evidente que nenhuma arte nem governo proporciona o que é útil a si
mesmo, mas, como dissemos há muito, proporciona e prescreve o que o é ao
súdito, pois tem por alvo a conveniência deste, que é o mais fraco, e não a do
mais forte” (Cf. 342e; 346e).
Após essa demonstração, por mais
ardilosa manobra Trasímaco intenta em demonstrar que ser injusto é ser prudente
e ser justo não passa de uma ingenuidade. Ao que Sócrates rebate e demonstra
perfeitamente que a justiça só pode trazer satisfação e felicidade enquanto que
a injustiça só traz desgraça e desventura. E, assim, “(…) jamais a injustiça
será mais vantajosa do que a justiça (…)” (Cf. 354a).
GLAUCON
Após este embate de Sócrates com
Trasímaco, Glaucon não se dá por satisfeito e passa a interrogar a Sócrates
propondo a existência de três modalidades de bens que os homens anseiam, são
eles:
1.
Aqueles que queremos possuí-lo pelo
puro e simples prazer de os possuir, pois geram tais prazeres por si só;
2.
Aqueles que queremos possuí-lo não só
pelo prazer que proporciona por si só, mas também pelas conseqüências benéficas
em os possuirmos;
3.
E, por fim, aqueles que queremos
possuí-lo por que nos traz algum rendimento — seja em dinheiro ou em honraria
—, apesar de não nos proporcionar prazer algum, muito pelo contrário, o mesmo
nos é penoso.
E, dentro destas categorias de bens,
Glaucon pede a Sócrates para que qualifique a Justiça, o qual a coloca como
sendo um bem da segunda categoria, ou seja, que nos proporciona prazer por si
só e pelas suas conseqüências. Glaucon o desafia ao afirmar que esse não é o
parecer da maioria, pois é consenso, segundo Glaucon, que a Justiça gera
honrarias, apesar de ser penosa e que deva ser evitada, quando possível. E,
dessa forma, propõem a Sócrates um diálogo onde defenderia e louvaria a
injustiça na expectativa de que Sócrates pudesse refutá-lo louvando, assim, à
Justiça.
Glaucon propõem realizar a seguinte
tarefa: afirma o que deva ser a justiça e sua origem, em seguida demonstrar que
todos que a praticam o fazem por obrigação e não por escolha própria, pois,
segundo ele, “(…) é natural que procedam assim, porquanto, afinal de contas, a
vida do injusto é muito melhor do que a do justo, no dizer deles.” (cf. 358c).
Desta monta, Glaucon argumenta que a justiça tem sua origem em leis que impedem
a prática da injustiça e oferece o exemplo do anel achado por Giges que ao
girar o engaste para o lado de dentro da mão o torna invisível e ao girar de
volta para fora o torna, novamente, visível. E com esse poder, Glaucon afirma
que qualquer homem, justo ou injusto, percorreria o mesmo caminho, ou seja, o
da ambição e, portanto, da prática da injustiça, visto estar impedido de ser
reconhecido ao praticar a injustiça e, assim, parecer ser justo. E conclui seu
argumento afirmando que o melhor, desde esse seu ponto de vista, é se parecer
justo, sendo na verdade injusto. Em suas próprias palavras temos:
(…) ninguém é justo por sua vontade,
mas constrangido, por entender que a justiça não é um bem para si,
individualmente, uma vez que, quando cada um julga que lhe é possível cometer
injustiças, comete-as. (Cf. 360c)
E continua sua argumentação afirmando
que entre dois homens, um justo e outro injusto, se cada um a sua maneira for
perfeito, um na justiça e outra na injustiça, o que for justo se granjear para
si fama de injusto, mesmo não o sendo, sofrerá as penas como se fosse um homem
injusto, já o homem injusto se granjear para si fama de justo, terá todas as
honrarias de homem justo, mesmo não o sendo. Isto demonstra, segundo Glaucon,
que as honrarias não serão pelas evidências de justiça mas pelas aparências de
justiça. O cerne da argumentação de Glaucon, que é defendida por Adimanto,
também, está no fato destes acreditarem que: “(…) a aparência, como me
demonstram os sábios, ‘subjuga a verdade’ e é senhor da felicidade (…)” (cf.
365bc).
Finalizando a discussão Sócrates,
interlocutor de Platão em seus diálogos, apresenta que Justiça é cada um fazer
aquilo que lhe cabe na sociedade, nem mais nem menos. Conceito discutível, com
certeza, mas fica a provocação, será que fazemos ao menos o que nos cabe em
nossa socidade? e o que, enquanto cidadãos do século XXI de uma socidade
ocidental latino-americana, nos cabe a ser feito?
Assim temos uma formulação, feita em
discussão, sobre o conceito de Justiça! Fica, para nós, mais uma vez a
provocação de, ao menos, discutirmos nossos posicionamentos na sociedade!
Fonte: http://www.vicentemarcal.unir.br/o-conceito-de-justica-em-platao/
Vicente E. R. Marçal
Filósofo.
Mestre em Filosofia na área de concentração de Filosofia da Mente,
Epistemologia e Lógica. Dedica-se na pesquisa em Epistemologia, mais
especificamente em Epistemologia Genética e sua relação com a Teoria do
Conhecimento. Atualmente trabalha no projeto de pesquisa intitulado “O
Grupo Prático de Deslocamentos e a Constituição das Noções de Objeto Permanente
e Espaço Objetivo” no Departamento de Filosofia da Universidade
Federal de Rondônia, onde coordena o GPEGRA
- Grupo de Pesquisa em Epistemologia Genética da Região Amazônica. É, também, membro
do GEPEGE
- Grupo de Estudo e Pesquisa em Epistemologia Genética e Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências
da UNESP – Marília-SP.
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