A tradição constitucional liberal protege o proprietário privado do Estado construtor ao prever uma indenização por expropriação, enquanto nenhum dispositivo jurídico, e muito menos constitucional, protege o cidadão do Estado neoliberal quando ele transfere para a esfera privada os bens da coletividade
Por Ugo Mattei
Como proteger a propriedade coletiva enquanto os governos liquidam os serviços públicos a preço de banana e dilapidam os recursos naturais para, por exemplo, “equilibrar” o orçamento? Forjada no mundo anglo-saxão e desenvolvida em países em que o Estado é pouco centralizado, como a Itália, a noção de “bem comum” propõe superar a antinomia entre propriedade pública e propriedade privada.
Quando um Estado privatiza uma ferrovia, uma linha de transporte aéreo ou um hospital, gera concessões para a distribuição de água potável ou vende universidades, ele está expropriando a comunidade de uma parte de seus bens – expropriação análoga realizada sobre a propriedade privada quando o Estado deseja construir uma estrada ou qualquer outra obra pública. Nos processos de privatização, o governo vende algo que não pertence ao Estado, e sim a cada membro da comunidade, da mesma forma que, quando desapropria um terreno para construir uma estrada, adquire por coerção uma propriedade que não é sua. Isso quer dizer que qualquer privatização empreendida pelo poder público – representado pela autoridade do momento – priva cada cidadão de sua cota do bem comum, exatamente como no caso de uma desapropriação de bem privado. Porém, com uma diferença de escala: a tradição constitucional liberal protege o proprietário privado do Estado construtor ao prever uma indenização por expropriação, enquanto nenhum dispositivo jurídico, e muito menos constitucional, protege o cidadão do Estado neoliberal quando ele transfere para a esfera privada os bens da coletividade.
Em função da evolução atual das relações de força entre os Estados e as grandes empresas transnacionais, essa assimetria representa um anacronismo jurídico e político. Tal irresponsabilidade constitucional autoriza os governos da situação a vender livremente os bens comuns para financiar suas políticas econômicas. Esse desvio também oblitera o fato de que os poderes políticos deveriam estar a serviço do povo soberano, e não o contrário. É certo que o servidor (o governo) deve dispor dos bens de seus governados (os cidadãos) para executar corretamente seu serviço; contudo, seu papel é o de administrador de confiança, e não de proprietário livre para abusar do patrimônio coletivo. Uma vez alienados, danificados ou destruídos, os bens comuns passam a não existir mais para a coletividade, pois não são reproduzíveis e dificilmente podem ser recuperados, seja pela geração presente – supondo que ela se dê conta de que escolheu, por maioria, um servidor desonesto – ou pelas seguintes, que nem sequer podem ser responsabilizadas pelas escolhas que não fizeram. A questão dos bens comuns passa antes por uma forma constitucional, porque é na Constituição que os sistemas políticos fixam as escolhas de longo prazo que devem ser preservadas da arbitrariedade de sucessivos governos.
Proteção da propriedade pública
É necessário, portanto, desenvolver uma elaboração teórica – acompanhada de uma defesa militante – que trate os “bens comuns” como uma categoria dotada de autonomia jurídica e figure como solução alternativa tanto para a propriedade privada como para a pública. Essa tarefa se revela necessária na medida em que o servidor sofre, hoje, do vício mortal do jogo (suas atividades são financiadas antes pelo crédito que pelos impostos), o que o fez cair nas mãos de usurários mais fortes que ele. Na grande maioria dos Estados, os governos – submetidos de várias formas aos interesses financeiros globais – dissipam os bens comuns fora de qualquer controle, avançando sob a justificativa da necessidade de pagar suas dívidas de jogo. Essa lógica faz passar por natural e obrigatório um conjunto de fatores que, na verdade, é resultado de escolhas políticas constantes e deliberadas.
A consciência dos bens comuns, ou seja, o fato de considerá-los ferramentas de satisfação das necessidades e dos direitos fundamentais da coletividade, não provém dos papéis: forma-se em todos os âmbitos das lutas – nem sempre vitoriosas, porém sempre emancipatórias – empreendidas no mundo inteiro. Em muitos casos, os inimigos são justamente os Estados que deveriam ser seus guardiões fiéis. Assim, a expropriação de bens comuns em favor dos interesses privados – de transnacionais, por exemplo – gera cada vez mais dependência dos governos (o que os coloca em uma posição vulnerável) perante empresas que ditam as políticas de privatização, de consumo e exploração do território. A situação da Grécia e da Irlanda é particularmente emblemática nesse sentido.
A tradição ocidental moderna se desenvolveu no quadro da dialética Estado/propriedade privada, em um momento da história em que apenas esta última parecia necessitar de proteção diante de governos autoritários e onipotentes. Desse processo, originaram-se garantias constitucionais, como a utilidade pública, o domínio reservado à lei (que garante ao legislador o monopólio de certas questões, excluindo a intervenção de outros poderes do Estado sob a forma de decretos e regulamentos) e a indenização. Mas agora que a relação de forças entre Estado e setor privado se transformou, a propriedade pública também necessita de proteção e garantias a longo prazo. Contudo, é difícil conceber quais seriam esses dispositivos no interior do cenário tradicional, em que a ideia de coisa pública se restringe ao Estado. Por essa razão, a proteção liberal clássica do privado em relação ao Estado não é suficiente.
A consciência política da expropriação ou do saqueio dos bens comuns no âmbito das lutas em curso (pelo acesso à água, pela universidade pública, pela alimentação, contra as grandes obras que degradam o meio ambiente) emerge, em geral, de maneira difusa, o que não impede a elaboração de novas ferramentas teóricas capazes de representar e indicar uma direção comum a essas mobilizações. A categoria de bens comuns é convocada a cumprir essa nova função constitucional de proteção do público perante o Estado neoliberal e o poder privado.
A tragédia dos bens comuns
Essa noção conheceu um salto qualitativo quando, em 2009, a economista norte-americana Elinor Ostrom recebeu o Prêmio Nobel de Economia por seus trabalhos sobre os “comuns”, em particular por seu livro La gouvernance des biens communs [A governança dos bens comuns]. Ela tornou-se, também, um nome-chave do cenário internacional. Contudo, essa consagração comprometeu seu potencial crítico. Na comunidade científica, a obra de Elinor não foi plenamente reconhecida quanto às consequências revolucionárias de colocar os bens comuns na posição central entre as categorias do jurídico e do político.
A “tragédia dos bens comuns” – a ideia segundo a qual o livre acesso dos indivíduos aos recursos naturais leva à superexploração e ameaça sua existência – levou a corrente universitária dominante a considerar o comum como o lugar do não direito por excelência. Nessa óptica, muitos economistas e especialistas das ciências sociais terminaram por fundar suas teorias a partir da imagem de uma pessoa que, convidada a um jantar com bufê em que há grande quantidade de comida à disposição, se lança a acumular o máximo de calorias possível à custa dos outros. O Homoeconomicusglutão consumiria o máximo de comida no menor espaço de tempo. Elinor mostrou como esse modelo de comportamento descreve mal a relação do homem de carne e osso com o mundo real.
Contudo, ela não identificou que o modelo descreve muito bem a conduta das duas instituições mais importantes que regem nosso mundo. Em relação aos bens comuns, tanto as empresas como o Estado neoliberal tendem a agir exatamente como o glutão convidado para o jantar: buscam adquirir o máximo de recursos à custa dos outros. Ambas – a primeira a partir da nação e seus dirigentes políticos, e a segunda impulsionada pelos interesses dos diretores e acionistas – adotam comportamentos míopes e egoístas, protegidos por uma grossa camada de névoa ideológica.
Privatização natural
Uma vez absorvido pela corrente científica e acadêmica dominante, o discurso sobre o comum corre o risco de cair em algum dos dois registros da moda: a “sustentabilidade” ou a “economia verde”. As gerações posteriores à “revolução científica” de fato encontraram a maneira de abrir o cofre onde estavam conservadas imensas fortunas que as gerações precedentes ignoravam possuir e não tinham os meios para explorá-las. A primeira modernidade (séculos XVI-XVIII), a partir da aliança entre a técnica, o direito e a economia, forjou um imaginário que apresenta como “ciência” o fato de aproveitar, ao dissipá-las, as riquezas contidas nesse cofre (carvão, petróleo, gás, água doce profunda) – recursos naturais que não podemos produzir e não se renovam naturalmente, ou demoram milhões de anos para serem repostos na natureza. Nesse imaginário se funda a ciência da exploração rápida e eficaz do tesouro que, após trezentos anos, chamamos de economia.
Na mentalidade moderna, explorar os bens comuns – por um consumo que inevitavelmente leva à privatização dos recursos a favor daqueles que conseguem aproveitá-los para lucrar da forma mais eficaz – tornou-se natural. O processo de acumulação leva à mercantilização, cujos pressupostos são a moeda, a propriedade privada do solo e o trabalho assalariado, invenções humanas que direcionam valores qualitativos únicos e não reprodutíveis – como a terra, o tempo de vida e a troca qualitativa – para fins comerciais.
Karl Marx descreveu o processo de acumulação primitiva – principalmente a espoliação das terras comuns da Inglaterra no século XVI – como a etapa inicial do desenvolvimento capitalista e que permitiu o avanço suficiente do capital para fazer deslanchar a Revolução Industrial. Contudo, a definição de acumulação primitiva pela conquista de bens poderia ser ampliada e incorporar também a privatização dos bens comuns construídos graças à poupança geral, fruto do trabalho de todos: transportes e serviços públicos, telecomunicações, planejamento urbano, bens culturais e paisagísticos, escolas (e de forma mais geral tudo o que se refere à cultura e ao conhecimento), hospitais; em suma, todas as estruturas que governam a vida social, até a defesa e as prisões.
Uma mudança geral de sensibilidade que conduzisse o bem comum ao centro da perspectiva seria a base para uma alteração profunda do âmbito técnico-jurídico. Trata-se, portanto, de revelar, denunciar e superar o paradoxo herdado da tradição constitucional liberal: o da propriedade privada mais protegida que a propriedade comum.
Ugo Mattei
Professor de Direito Internacional Comparado do Hasting College of the Law da Universidade da Califórnia e autor de Beni Comuni, um manifesti, Laterza, Bari-Roma, 2011
FONTE: Le Monde Diplomatique Brasil
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OBS: TEXTO EXTRAÍDO DO BLOG DO PROFESSOR ALUIZIO MOREIRA.
Licenciado, Bacharel e Mestre em História, atualmente leciona Métodos de Pesquisa em Direito e Métodos e Técnicas de Pesquisa em Administração, ambas na Faculdade Salesiana do Nordeste. É escritor e pesquisador no campo da História, Politica, Filosofia e Arte.
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