Graduando do Curso de Direito da Unidade
de Ensino Superior Dom Bosco - UNDB, São Luís-MA.
INTRODUÇÃO
Ao longo
do processo de formação das sociedades, um fato de clareza solar se torna cada
vez mais evidente quando se equipara Direito e Religião: o fato de que há uma
congruência tamanha entre ambos, a ponto desta última exercer influência sobre
o primeiro, que se torna forçoso perguntar o quão correto está um magistrado ao
prolatar um comando sentencial com fundamentação religiosa, qual a linha tênue
que separa ambos os lados e como pode ser verificado o pressuposto de validade
de uma norma à qual se atribui caráter sagrado, posto que há uma relativização
(ou não) dessa norma, em função da cultura e do lapso temporal em que se
insere.
Dentre as
acusações que pesavam sobre Sócrates, estava a que lhe imputava o crime de não
reconhecer os deuses do Estado ateniense. Não caracterizando uma prática
passível de penalização branda, a primeira das acusações é a que mais
controvérsia causa, ao se verificar que o próprio Sócrates não era um completo
descrente das divindades (como será exposto aqui), mas que rejeitou penas
alternativas para obedecer estritamente ao que julgava ser correto perante a
lei, acreditando derivar esta, inclusive, da vontade divina.
1. O CULTO AOS DEUSES
Em sociedades primitivas, a noção de religião não
se aproxima, por dedução óbvia, daquela instituída pelas civilizações mais
avançadas. Mas, ao se fazer um estudo acerca da obra A Cidade Antiga,
de Fustel de Coulanges, é possível notar, ainda que em análise perfunctória,
que boa parte dos costumes e tradições daqueles povos foram incorporadas pelas
civilizações ocidentais – algumas delas praticadas até hoje, como, por exemplo,
a desigualdade no tratamento de filho e filha, onde os pais dão ao homem uma
maior (e prematura) independência em relação à mulher. Não obstante, na obra
supracitada, fica claro que a religião é o elemento que estrutura a família.
"A religião fez com que a família formasse um corpo nesta e na outra vida.
A família antiga é assim uma associação religiosa, mais que uma associação
natural" (COULANGES, 1998, p.16).
Ainda nesse sentido, discorre Coulanges acerca da
individualidade dessa religião, por parte de cada família, explicitando que
"nesta religião primitiva, cada um dos seus deuses não podia ser adorado
por mais de uma família. A religião era puramente doméstica" (COULANGES,
1998, p.14). Individualizada, também, era a autoridade sobre cada uma dessas
famílias; Papel que cabia exclusivamente ao pater familias, ao
exercer os mais distintos poderes no seio de seu lar.
Permite-se
inferir, ante o exposto, que a religiosidade dos povos – em sua origem – possui
caráter pluralista (na medida em que se adoram vários deuses) e segmentado, ao
se verificar uma ramificação de religiões de acordo com as respectivas
famílias, individualizando a aplicabilidade das leis daí advindas, para cada
uma delas. Isto é tão verdade que, mesmo após a união de várias famílias, os
deuses daquela família específica continuarão a serem adorados só, e somente
só, por ela. A essência destas doutrinas religiosas não pode ser, portanto,
atirada deliberadamente sobre as mais diversas culturas e pessoas, visando
converter ideologicamente as distintas camadas.
2. A LEI DOS POVOS ANTIGOS
Aqui,
corrobora-se o que foi asseverado no item anterior, visto que as primeiras leis
a surgirem eram originadas e fundamentadas na religião. "Os antigos
códigos reuniam um conjunto de ritos, de prescrições litúrgicas, de orações e,
ao mesmo tempo, de disposições legislativas" (COULANGES, 1998, p.72). O
referenciado autor atribui até mesmo a Sólon, cuja reforma representou um passo
decisivo para o desenvolvimento da democracia, consolidada posteriormente na
legislação de Clístenes, o fato de que sua obra possui ligação com rituais e
cultos sagrados, dispondo que
O código
das Doze Tábuas, embora mais recente, continha, ainda assim, minuciosas
prescrições sobre os ritos religiosos da sepultura. A obra de Sólon era, ao
mesmo tempo, código, constituição e ritual; a ordem dos sacrifícios e o preço
das vítimas achavam-se ali tão regulamentados como os ritos das núpcias ou o
culto dos antepassados (COULANGES, 1998, p.72).
Justamente
em função de se proceder à estruturação de códigos arraigados a regras de ordem
sacra, é que o vínculo de cidadania vai significar o instrumento através do
qual as pessoas de um mesmo culto estão reunidas. No caso, o culto da cidade.
Com Atenas isto não será diferente; Em decorrência do vínculo de cidadania,
será observada uma profunda aversão ao estrangeiro (xenofobia), por se
acreditar que este seria uma mácula à imagem dos cidadãos que ali se encontram
reunidos. Mesmo após as reformas de Clístenes, onde se verificou
verdadeiramente uma ampliação dos direitos políticos dos cidadãos (homens
nascidos livres), a característica predominante da democracia ateniense era
que, quando um cidadão ultrapassava os limites da polis, era imediatamente
privado de exercer seus direitos políticos.
Como assinala Jones (1997), em sua obra sobre a
cultura ateniense, as póleis gregas mantiveram seu sentido de
comunidade política através de leis de cidadania escritas e geralmente exclusivas.
Atenas tinha leis de cidadania que eram escritas até pelos padrões gregos. Após
a lei de cidadania promulgada por Péricles em 451, só os homens que tivessem a
mãe e o pai atenienses podiam ser cidadãos. Durante o processo de formação das
cidades, o que se percebe é a criação de instrumentos que obriguem a
permanência dos cidadãos, em detrimento da presença dos estrangeiros, como, por
exemplo, o censo ou a cerimônia da Lustração; Instrumentos, estes, que denotam,
inicialmente, um caráter religioso.
O declínio
deste tipo de organismo começa quando o homem passa a questionar sobre o porquê
de estar sempre cumprindo normas. Estas, por sua vez, sempre apresentam uma
qualidade inerente à alguma entidade metafísica; Passa o homem, então, a
questionar acerca do sentido de toda essa organização, surgindo, a partir daí,
a figura do sofista, que vai, paulatinamente, contribuindo para a mudança da
fundamentação religiosa do direito, visando estribar sua concatenação política.
3. O JULGAMENTO DE SÓCRATES
Sócrates,
assim como os filósofos antigos, possuía grande apego às leis de seu tempo,
pois não as concebia como sendo fruto da atividade humana, mas sim oriundas da
natureza divina. Diferentemente do que seus acusadores apontam como crime,
Sócrates defende-se utilizando argumentos que o colocam como caluniado e,
surpreendendo os jurados que ali se encontravam, juntamente com a população
ateniense, afirma que não parte em sua defesa, como era esperado, mas sim em
defesa dos cidadãos, alegando que, ao ser condenado, só quem poderia perder com
tal fato seria a própria população de Atenas. Sócrates foi acusado por Meleto,
Âniton e Lícon de não reconhecer os deuses do Estado, de introduzir novas
divindades e de corromper a juventude (MOSSÉ, 1991), primeira acusação da qual
quis oferecer defesa.
Através
de seu método maiêutico, Sócrates pregava que a ignorância deveria ser vista
como uma doença do espírito. Seu trabalho restringia-se, dessa forma, a expor a
ideia, apenas. Quem deveria encontrar sua própria verdade era seu interlocutor,
demonstrando, ademais, o caráter extremamente racionalista, o qual ele tanto
defendia. O fato é que
Qualquer manifestação de dúvida ou de indiferença a
respeito da religião da cidade era considerada atentado à unidade da
comunidade, e não é por acaso que a impiedade, a asebeia, era
passível de uma graphaí, de uma ação pública (MOSSÉ, 1991, p.114).
Conforme
depreende-se da análise da obra de Justino Romano, o que Sócrates passou não
foi mais que uma mera perseguição infundada, justamente por seus opositores
alegarem que ele estava a "introduzir novos demônios" na mente
juvenil à época. Como segue observação:
Aqueles
que, antes de Cristo, tentaram investigar e demonstrar as coisas pela razão,
conforme as forças humanas, foram levados aos tribunais como ímpios e amigos de
novidades. Sócrates, que mais se empenhou nisso, foi acusado dos mesmos crimes
que nós, pois diziam que ele introduzia novos demônios e que não reconhecia
aqueles que a cidade considerava como deuses (JUSTINO, 1995, p.4-5).
Sócrates, ao falar aos atenienses, tenta explicar a
forma como Meleto se contradiz ao acusá-lo de corremper os jovens, ensinando-os
a respeitar outras divindades, mas afirmando, ao mesmo tempo, que Sócrates não
acreditava inteiramente em nenhum deus. Como assinala o diálogo de sua
Apologia, in verbis:
É claro,
segundo a acusação escrita por ti mesmo, que ensino a não respeitar os deuses
que a cidade respeita, porém, outras divindades novas. Não dizes que os
corrompo, ensinando tais coisas?
- Sim, é
isso mesmo que eu digo, sempre que posso.
- Assim,
pois, Meleto, por estes mesmos deuses, de que agora está falando, fala ainda
mais claro, a mim e aos outros. Não consigo entender se dizes que eu ensino a
creditar que existem certos deuses - e em verdade creio que existem deuses, e
não sou de todo ateu, nem sou culpado de tal erro - mas não são os da cidade,
porém outros, e disso exatamente me acusas, dizendo que eu creio em outros
deuses. Ou dizes que eu mesmo não creio inteiramente nos deuses e que ensino
isso aos outros?
- Eu digo
isso, que não acreditas inteiramente nos deuses (PLATÃO, 1987, p.11).
Werner Jaeger, em sua obra Paideia,
trata da perspectiva que se tem de Sócrates, posteriormente, na Idade Média,
mostrando que o filósofo, apesar de ser apenas um "nome famoso",
possui um importante papel ao contribuir para a criação de uma religião
moderna, caracterizando Sócrates, inclusive, como "o apóstolo da liberdade
moral", posto que o pai da maiêutica seguia de maneira veemente apenas o
que estava de acordo à sua consciência, afastando dogmas e tradições do período
helênico, mas não se caracterizando, puramente, um ser avesso aos deuses, como
expõe:
É preciso frisar que o Sócrates anti-escolástico
não é, exatamente, um anticristo! Bem ao contrário, Sócrates tem agora a missão
de conciliar o helenismo com o cristianismo –
Jesus Cristo e o homem helênico – e assim ser o protagonista
de uma religião, dita moderna (JAEGER, 2003, p.493).
Ainda que
se reputasse caluniado, Sócrates, como bem mostram seus discípulos, apresenta-se
como um inconteste seguidor das leis, ao se entregar mansamente à sua
condenação, tão-somente por assim exigir a lei. Na época, as penas alternativas
poderiam conceder ao condenado o exílio, proposta que foi colocada à Sócrates,
sendo, impetuosamente, recusada. A aludida pena significaria a perda da
cidadania e, ante a realidade que ali se vivia, nada poderia ser mais
desonrável que a perda desta. Os textos de Xenofonte – um de seus mais fieis
discípulos – mostram um Sócrates temeroso aos deuses, patriota e amigo da
juventude, expondo que aquilo que matou seu mestre não foi o envenenamento,
mas, em verdade, a inveja de seus acusadores.
Sócrates,
como exímio cumpridor das leis, recorre à legalidade ao afirmar que estaria
sendo vítima de uma aplicação viciada das mesmas, explanando que "o juiz
não toma assento para dispensar o favor da justiça, mas para julgar; ele não
jurou favorecer a quem bem lhe pareça, mas julgou segundo as leis"
(PLATÃO, 1987, p.20). Ainda assim, dos 501 juízes do tribunal, 280 votaram pela
condenação e 221 votaram pela absolvição (MOSSÉ, 1991), o que permite afigurar
que o fator religiosidade proporcionou a condenação de maneira mais notável que
a legalidade, ao se verificar que duas das acusações eram concernentes ao culto
aos deuses e que o filósofo cumpriu sua sentença – abjurando a um plano de fuga
já arquitetado por seus seguidores – acreditando que obedecendo às leis,
obedecia, voluntariamente, aos deuses.
4. LEGADO HISTÓRICO
Não é possível negar, ante o exposto, que a religião
interfira (forte ou brandamente, mediante a conjuntura histórico-política) no
processo legislativo da maioria dos povos. Seja no Período Arcaico, quando o
homem vive segundo suas crenças; Seja quando se observam os principais
institutos dos povos da Mesopotâmia e a formação de seus códigos (Manu,
Hamurabi, Esnunna etc.); Na Idade Média, com a criação do corpus iuris
canonici, através do qual a Igreja Católica fundamenta todo o ordenamento
que desencadeia e alicercia a Dogmática Canônica, até os dias atuais, é
factível a constatação de princípios religiosos na estruturação e aplicação do
direito, como aponta o Prof. Dr. Urbano Zilles:
Percebemos
que a questão do conhecimento de Deus é atual. (...). Apesar dos
questionamentos críticos à metafísica tradicional, nos tempos modernos e
contemporâneos, a questão de Deus permaneceu como a mais desafiadora e, ao
mesmo tempo, a mais interessante para a reflexão filosófica (ZILLES, 1997, p.8
e 12).
Prova
disso é que, no cenário jurídico atual, a insurgência da religião em casos
relacionados a questões como aborto, relações homoafetivas, drogas e, até
mesmo, controle de natalidade, estabelece um regramento paralelo, muitas vezes
não condizente com o foro jurídico, culminando em ações viciadas por conta da
legalidade cristã que é imposta em determinadas sociedades. É razoável, no
entanto, perscrutar acerca da validade de tais ensinamentos, posto que, tanto
as instituições evangélicas quanto a instituição eclesiástica mais persuasiva
do planeta, se preocupam em transmitir apenas os preceitos divinos que tangem
ao bom comportamento do homem, fidelidade, honra e abstinência, estabelecendo
(e impondo), dessa forma, a postura de galhardia a que o homem se deve valer.
Sem
dúvidas, constam na Bíblia Sagrada alguns dos feitos mais memoráveis de homens
ínclitos que viveram à época de Cristo, ou antes dele. Mas há, também,
registros de atividades tão contrárias à "lei de Deus", e tão
reprováveis aos olhos humanos, quanto as práticas mais pungíveis aos bons
costumes internalizados pelas civilizações. A título de exemplo, todos lembram
de Davi como sendo um dos grandes reis de Israel, sendo sua história contada
aos homens, desde a mais tenra idade, como aquele que enfrentou o mais temido
dos filisteus (Golias), pondo fim a uma guerra que se estendia por gerações.
Ninguém comenta, no entanto, que Davi mandou seu melhor e mais fiel amigo,
Urias, para morrer na guerra, para que pudesse se casar com a esposa dele
(BÍBLIA, II Samuel, 11:1-27).
Torna-se
imperioso reconhecer, portanto, que, apesar de todo o legado deixado pelos
povos antigos, é perigoso se fazer uma interpretação da lei como sendo um
aspecto da religião, visto que a historicidade apresenta uma alternância dos
princípios religiosos em função da cultura, da temporalidade e da localização
geográfica em que estão inseridos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A
originalidade da obra de um filósofo perde-se ao serem apregoadas a ela (à
obra) ideologias religiosas das mais diversas perspectivas históricas. A
genialidade de Sócrates se dava justamente por ele ser visto como um mártir da
antiguidade pagã, mantendo seu pensamento enraizado na busca racional da
felicidade, o bem maior a ser alcançado. Ao auferir conhecimento, o homem
estaria de posse do único instrumento responsável pela sua liberdade moral, ao
desencadeamento das ideias que proporcionariam a suspensão de todo o
conhecimento parcial que se tem acerca da matéria, ensejando na busca pela
verdade na qual se crê, autenticamente.
Não
distante disso, deve repousar o entendimento dos aplicadores da lei,
atualmente, com vistas a se proceder a uma correta prestação jurisdicional,
livre de manifestações compostas de pluralidades religiosas, fixando o Direito
como uma instituição social independente e produtiva, pronta a dirimir os
distintos interesses da coletividade.
A universalidade significa que ela visa todos os
seres humanos, independente de barreiras nacionais, étnicas ou culturais.
(...). A autonomia significa que esses seres humanos individualizados são aptos
a pensarem por si mesmos, sem a tutela da religião ou da ideologia,
a agirem no espaço público e a adquirirem, pelo seu trabalho, os bens e
serviços necessários à sobrevivência material (ROUANET, 1993, p.09).
(Grifou-se)
O
julgamento de Sócrates permite, portanto, que a historiografia jurídica
desconfie das controversas relações que se observam entre o Direito e a
Religião.
REFERÊNCIAS
BÍBLIA.
Português. A Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de
Almeida. 6. ed. rev. atual. São Paulo: Editora Geográfica, 2005.
COULANGES,
Fustel de. A Cidade Antiga. Tradução de Fernando de Aguiar.
São Paulo: Martins Fontes, 1998.
JAEGER,
Werner. Paideia. Trad. Artur M. Parreira. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
JONES,
Peter V. O mundo Atenas: uma introdução à cultura clássica
ateniense. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
JUSTINO. I
e II Apologia / Diálogo com Trifão. Trad. Ivo Storniolo e Euclides M.
Balancin. 2. ed. rev. São Paulo: Paulus, 1995.
MOSSÉ,
Claude. O processo de Sócrates. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.
PLATÃO. Defesa
de Sócrates. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. Coleção "Os
Pensadores".
ROUANET,
Sergio Paulo. Mal-estar na modernidade: ensaios. 2. reimp. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993.
ZILLES,
Urbano. O problema do conhecimento de Deus. 2. ed. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 1997.
Fonte:
http://www.artigonal.com/doutrina-artigos/a-relacao-entre-direito-e-o-paradigma-religioso-no-processo-de-formacao-das-leis-6337184.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário